Conheci Zé Rodrix ainda José Rodrigues – o que determina que isso não pode ter acontecido há menos de quarenta anos. Para ser exato, foi em 1970.
Havia um barzinho no Leme, no Rio, anexo ao Sacha’s, apelidado Sachinha’s, que atendia aos frequentadores menos abonados da famosa boite, servindo drinks e comidinhas a preços, digamos, “razoáveis”. Isso foi na época do Grupo Manifesto, aquele do Guarabyra, que ganhou o Festival da Globo com a canção “Margarida”, e que tinha entre seus componentes vários moradores do bairro.
Suponho que isso explique a avassaladora frequência de músicos, cantores, compositores e aspirantes que se concentraram ali durante aquele ano. Havia um piano, provável rescaldo da casa principal, num tempo mais afeito à música gravada do que a feita ao vivo. E nele tocavam os frequentadores, mostrando canções novas, temas inéditos sobre palavras soltas que viriam a se tornar música num futuro incerto.
Levávamos violões, armávamos vocais, era uma festa diária. Ivan Lins, Gonzaguinha, Guarabyra, Mariozinho Rocha, Ronaldo Monteiro, o saudoso Agostinho dos Santos, Sérgio Bittencourt, Guto Graça Mello, Wagner Tiso, Novelli, Nelson Angelo, Antonio Adolfo, Tibério Gaspar, Arthur Verocai… tinha de tudo um pouco.
Às vezes, a direção da casa premiava alguém com um espaguetão à bolonhesa ou uma rodada de chopp, obviamente tentando compensar de alguma forma aquela turma que transformara o lugar num concorridíssimo point da noite carioca. Quanto a dinheiro, nada: não se pagava um níquel a ninguém. E o incrível é que ninguém ligava pra isso. Ainda.
Foi nesse ambiente que conheci José Rodrigues Trindade, magrinho, parecendo menor do que realmente era, colete de couro até os joelhos, óculos de aros grossos e quadrados colados com esparadrapo, falante, filósofo, discutidor e talentoso. Talento puro. Tinha sido, junto com Maurício Maestro, Davi Tygel e Ricardo Villas, integrante do MomentoQuatro, grupo vocal de relativo sucesso, mais conhecido por ter acompanhado Edu Lobo em seu vitorioso “Ponteio” no famoso Festival da Record de 1967.
Ali, no Sachinha’s, ouvi suas primeiras canções e passei a admirá-lo ainda mais por sua verve energética e combativa. Foi meu batismo de Zé Rodrix, de quem naquele mesmo dia me tornaria irmão-por-escolha pra vida inteira e com quem eu viria a compor dezenas de canções. Este espetáculo traz um pouco de Zé Rodrix pra vocês. Suas canções, seus pensamentos, seu talento, suas influências – com uma ajudinha substancial de alguns de seus amigos.
Nessa mesma época, Milton Nascimento procurava músicos para acompanhá-lo em um projeto novo, mais voltado para o universo pop e suas influências, que eram
irresistíveis a essa altura. Nasce o Som Imaginário – Wagner Tiso, Luiz Alves, Robertinho Silva, Fredera, Tavito e Zé Rodrix, com o agregado Naná Vasconcellos. Um time originalíssimo – que foi convidado pelo então Produtor da Odeon, Mariozinho Rocha, a gravar um LP próprio, independente do trabalho com Milton. Para esse disco, aproveitamos duas canções que compusemos para a peça “Miss Brasil”, de Maria Clara Machado. É 1970, ano da copa do mundo.
Eu e Zé moramos juntos durante uns dois anos – não maritalmente, é claro. Aliás, se tinha uma coisa que não era do Zé, é ser gay. Aliás, nem eu. Costumo dizer que era até por uma questão de inteligência: quem nos comeria? Bom, isso não impediu o Zé de fazer uma canção em minha homenagem, tornando-me seu primeiro e único “muso”. Uma homenagem à minha mineirice desenfreada.
…essa canção foi gravada no primeiro LP de Sá, Rodrix e Guarabyra – um projeto inovador, que usava uma expressão pinçada dos versos de “Casa no Campo” – o Rock Rural – como pedra fundamental de um dos discos mais importantes da canção brasileira: “Passado, presente e futuro”. Fizeram também um show inesquecível no Teatro Opinião com esse repertório. Fui tantas vezes assistir que o decorei de cabo a rabo.
Na época do “1º Acto”, produzido por mim, Tavito, éramos obrigados a inventar canções de última hora para compor os buracos causados pela censura.
Eu e Zé passamos muitos anos sem compor, já que ele morava em São Paulo e eu no Rio. Um belo dia ele me manda por e-mail uma letra – um poema, na verdade – feito para sua companheira de vida, Julia Rodrix, sugerindo que eu o musicasse.
A questão é que nós, escravos desses novos tempos turbulentos, vamos deixando pra depois o que deveríamos fazer imediatamente; e o poema dormiu na gaveta um sono de dois meses sem que eu o olhasse de novo. Aí o cara virou bicho-fera, passou-me um esporro do tamanho inverso ao tamanho da paz e disse que, se eu não fosse musicá-lo, ele encontraria quem o fizesse, coisa e tal, e nuvens marimbondos assassinos sobrevoando cada palavra. E eu: Calma, Zé. Desliguei o telefone e peguei a letra e o violão. Aí, como em tantas outras vezes, deu-se o milagre.
Cantei a canção de prima, de cabo a rabo em tempo real, como se já a conhecesse de cor, tomando o cuidado fundamental de gravá-la logo na segunda vez. Pequei de novo o telefone e cantei-lhe a melodia na orelha – e pude sentir seu choro, uma raridade, do outro lado da linha. Essa se tornou uma canção importante pra nós e passamos a cantá-la nos showzinhos que fazíamos em dupla. Seu nome: As Fronteiras do Amor.
E assim retomamos mais alguns longos anos de parceria e camaradagem em shows, em noites autorais do Clube Caiubi e onde mais nos chamassem…
(Texto de Tavito, 2014. tavito veio a falecer em 2019 e se juntar ao Zé Rodrix que partiu em 2019)
**Foto: Marlene Alves